Muito pouco do cinema brasileiro produzido até os anos 1930, geralmente lembrado como "filme silencioso", chegou aos dias de hoje. Estima-se que apenas 7% das obras encontram-se preservadas. Diante desse cenário, entre 2008 e 2009 a Cinemateca Brasileira desenvolveu projetos com a Secretaria do Audiovisual e a Caixa Econômica Federal visando preservar e difundir 102 obras remanescentes desse período.
"[...] o cinema de enredo dessa época – a fita posada como então se dizia – frequentemente emanava da vida da cidade de uma forma quase tão direta quanto o documental. Esses filmes são também, à sua maneira, registros sócio-culturais, [...] a gente constata que não há assunto de maior ou menor ressonância pública [...] que não tenha sido registrado pelo velho cinematógrafo."
Paulo Emílio Sales Gomes, 1974. In: A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro 1989-1930.
As condições históricas da atividade cinematográfica brasileira dificultaram a consolidação de uma cultura preservacionista para o audiovisual nacional, prejudicando a sua dimensão prática em arquivos de filmes e cinematecas pelo país. Nesse cenário, muito pouco do cinema brasileiro produzido até os anos 1930, geralmente lembrado pela alcunha “filme silencioso”, chegou aos dias de hoje: estima-se que aproximadamente 7% das 4.600 obras silenciosas já prospectadas e catalogadas na base de dados Filmografia Brasileira encontram-se preservadas.
Embora um conjunto bastante diminuto tenha sobrevivido, ainda é possível se ter um panorama com imagens desse cinema silencioso. Entre 2008 e 2009, a Cinemateca Brasileira desenvolveu projetos com a Secretaria do Audiovisual e a Caixa Econômica Federal visando preservar e difundir obras remanescentes daquele período. Foram realizados processos especializados de duplicação fotoquímica, recuperação e telecinagem, além de trabalhos de restauração tão artesanais quanto as técnicas de produção original, resultando na disponibilização de 102 títulos no Banco de Conteúdos Culturais.
O particular conteúdo e a trajetória de cada uma dessas obras (mesmo quando incompletas) se confundem com a história do Brasil, evidenciando práticas, costumes e as dificuldades presentes na sociedade que as produziu. Filmes “cavados” junto às elites política e econômica deram visibilidade aos seus rituais do poder, como Veneza americana (1925), que exalta as polêmicas realizações do governo de Pernambuco; ou um simples ato da agenda de Washington Luís transformado num evento em O presidente da República visitando a limpeza pública (anos 1920); ou, ainda, a propaganda de uma grande olaria mineira em Cerâmica Horizontina (anos 1920), que acaba desvelando as precárias condições dos seus empregados e a exploração do trabalho infantil.
O elogio às riquezas naturais e aos traços exóticos da cultura brasileira também foi mostrado em documentários como Fazenda Santa Catarina – Pederneiras (1927) e Brasil pitoresco: viagens de Cornélio Pires (1925). Atos solenes e eventos históricos foram noticiados, a exemplo da posse de Arthur Bernardes em O novo governo da República (1922); da comoção registrada no Rio de Janeiro em os Funerais de Rui Barbosa (1923); e da agitação pública da Revolução de 1930 exibida em O triumpho da revolução brasileira (1930) e Distúrbios na capital paulista (1930). Manifestações da fé popular também foram levadas às telas, seja a crença de romeiros na personagem milagrosa de A “santa” de Coqueiros (1931); a religião espírita observada em As curas do professor Mozart (1924); ou a grande devoção católica presente em Coroação de N.S. Aparecida como padroeira do Brasil (1931). Nesse conjunto preservado pela Cinemateca Brasileira, raros filmes de enredo estão presentes, como um fragmento de Óculos do vovô (1913); o inacabado Onde a terra acaba (1931); e Alma do Brasil (1932), que apresenta a reconstituição histórica da “retirada da laguna”, importante episódio da Guerra do Paraguai.
Ao observar os temas presentes nesses filmes, nota-se que culturas regionais, riquezas nacionais, manifestações da vida cotidiana, cerimoniais da esfera pública e privada, e a historicidade das suas próprias representações são elementos que traduzem a expressão social que essas obras comportam, individualmente ou em conjunto. Até as realizações mais precárias, independentemente dos seus diferentes estilos e formatos, se impõem como documentos valiosos para uma compreensão histórica das dimensões política, econômica, sociocultural e estética da civilização brasileira.