MAZZAROPI

A Cinemateca Brasileira e o Museu Mazzaropi apresentam seis filmes de Amácio Mazzaropi resultados do projeto Digitalização e Difusão de Obras de Amácio Mazzaropi, financiado pelo edital Lei Paulo Gustavo 13/223, da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo.

Filmes

Mazzaropi era um notório observador do cotidiano e da nossa cultura. Sua carreira, caracterizada por comédias divertidas e leves, às vezes com um toque de melodrama, abordavam temas e discussões importantes como a discriminação na relação entre campo e cidade, bem como as injustiças voltadas ao cotidiano de grupos marginalizados da sociedade brasileira. Amácio Mazzaropi nunca perdeu a mão em utilizar o humor como alicerce de uma linguagem popular que alcançou, e ainda alcança, um impressionante número de espectadores.

+ saiba mais sobre MAZZAROPI

O imaginário da memória coletiva, seja ela regional ou nacional, é irrigado por traços e valores culturais que se consolidam e se reconstroem ao longo do tempo. Nesse processo, símbolos e arquétipos da nossa dimensão cotidiana, por mais que emoldurados na figura do “outro”, acabam sendo o nosso melhor espelho. Entre muitos exemplos, a figura do forasteiro desajeitado, sintomático de um tecido social que se afastava da vida interiorana e se adequava à modernidade nos grandes centros em meados do século passado, é o que Mazzaropi ainda ensina ao seu público espectador. Em seus mais de 30 filmes, o humorista, cantor, radialista, produtor, roteirista e cineasta Amácio Mazzaropi invariavelmente une, numa única persona, o circo e a tradição caipira, com a teimosia preguiçosa do jeca em toda a sua simplória sagacidade, lastreada tanto na literatura como no cinema estrelado por Genésio Arruda, já nos anos 1920.

Com o Projeto Digitalização e Difusão de Obras de Amácio Mazzaropi, a principal instituição voltada à preservação da memória cinematográfica e audiovisual nacional torna ainda mais presente esse componente popular da identidade nacional que o cinema ajudou a forjar. A Cinemateca Brasileira cumpre o imperativo da conservação dessa valiosa filmografia, atendendo uma demanda constante por parte de pesquisadores e do público em geral, ao resgatar uma experiência próxima do original, dando acesso a um formato de difusão similar ao da época de lançamento, além de ofertar roteiros e peças de divulgação, como cartazes e fotografias. A inciativa é fruto de uma parceria da Cinemateca Brasileira com o Instituto Mazzaropi, e financiado com recursos do edital 13/2023 da Lei Paulo Gustavo, da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo. 

Esse esforço da Cinemateca Brasileira se soma a projetos anteriores, como o Programa de Restauro Cinemateca Brasileira – Petrobras 2007 e, após a retomada institucional de 2022, o Projeto Nitratos da Cinemateca Brasileira: Preservação e Acesso. Iniciativas que não só garantiram a integridade de matrizes de preservação, como aprofundaram informações de obras catalogadas na base de dados Filmografia Brasileira, como as de Mazzaropi. Assim, a digitalização e a confecção de cópias dentro de padrões otimizados para a difusão em salas de cinema, oferecendo a fruição próxima ao originalmente experimentado pelo público no formato 35mm, compõe um ciclo contínuo de ações que garantem acesso perene e íntegro aos filmes e documentos correlatos das obras processadas pelo Projeto, e disponíveis no Banco de Conteúdos Culturais: Sai da Frente (1952), Candinho (1953), Zé do Periquito (1961), O Lamparina (1964), O Corinthiano (1966) e O Puritano da Rua Augusta (1966).

As seis obras digitalizadas da filmografia de Amácio Mazzaropi exemplificam um arco importante da sua trajetória cinematográfica. O seu longa-metragem de estreia Sai da Frente, 1952, dirigido e roteirizado por Abílio Pereira de Almeida, marca não só a sua estreia no cinema, mas a primeira comédia do catálogo de realizações da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que via nesse gênero uma forma de inserção junto às faixas mais populares do público frequentador dos cinemas, tal como já ocorria com as chanchadas. Aqui Mazzaropi é Isidoro, um atrapalhado dono de caminhão que, com a ajuda de seu cachorro, realiza uma mudança de São Paulo para a cidade de Santos. Uma narrativa com muita confusão envolvendo burocratas, policiais e motoristas no trânsito, demonstrando a dificuldade do protagonista perdido na lida com o ritmo de uma capital – o papel seria repetido por Mazzaropi em Nadando em Dinheiro, no mesmo ano. Ainda pela Companhia Vera Cruz, em 1953, estreou a comédia Candinho, igualmente dirigida e roteirizada por Abílio Pereira de Almeida. No papel-título, Mazzaropi contracena com astros e estrelas do primeiro time da produtora paulista, como Marisa Prado, Ruth de Souza, Adoniran Barbosa, John Herbert, entre outros. Desta vez é a travessia do personagem caipira, obrigado a sair do campo para viver na cidade, a chave interpretativa da própria temática do desterro populacional de pessoas que migravam para a capital paulista em busca de oportunidades, tendo que trabalhar em diferentes empregos, inclusive na vida boêmia da “cidade que mais cresce”.

Em 1958, Mazzaropi funda a sua própria produtora PAM - Filmes (Produções Amácio Mazzaropi), na cidade de Taubaté-SP, pela qual passa a lançar os seus filmes e a ter mais controle criativo, optando por uma estratégia de distribuição de sucesso que levou milhões de espectadores para as salas de cinema. Exemplo desse período e dessa prática é o longa-metragem Zé do Periquito, 1961, que não só foi estrelado por Mazzaropi, mas também dirigido, roteirizado, produzido e distribuído. No enredo, mais uma trama que evidencia as diferenças de classes em papéis sociais no contexto da grande metrópole: como Zenó, um tímido e pobre jardineiro de um colégio tradicional de São Paulo, apaixona-se por Carmen, uma jovem e rica estudante. Em sua inocência é levado a acreditar que ela sente o mesmo por ele e, que se ele fosse rico, tudo seria diferente, então parte de trem para outra cidade, onde se instala na praça com um realejo e um periquito da sorte. Já na comédia, O Lamparina, 1964, dirigido por Glauko Mirko Laureli e roteirizado por Carlos Garcia, o papel é o caipira Bernardino Jabá, que ao ser confundido com um líder cangaceiro é obrigado a sustentar a farsa. A trama se desenrola ao ponto de o caipira acabar preso e, após um ano privado de liberdade, retorna ao seu vilarejo para ser confundido com uma alma penada. Uma clara homenagem à tradição de filmes brasileiros sobre o cangaço, curiosamente lançado no mesmo ano de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.

Em O Corinthiano, 1966, comédia dirigida por Milton Amaral e roteirizada pelo próprio Mazzaropi, mais um recorde de bilheteria do cinema nacional que contou com a participação especial de comentarias e narradores esportivos como Geraldo Bretas e Pedro Luíz, respectivamente. No enredo, Mazzaropi interpreta Seu Manuel, fanático torcedor do Corinthians, amor pelo qual se indispõe com os filhos, a esposa e os vizinhos, especialmente os torcedores do time rival, o Palmeiras. As movimentadas partidas entre Corinthians e Palmeiras se transformam numa guerra e Manuel faz promessas malucas e orações a São Jorge, passando por sofrimentos e proferindo insultos da arquibancada. Mas ao final, o barbeiro "cabeça-dura" reata as relações de amizade com os filhos e os vizinhos. O longa-metragem foi filmado com o total apoio das agremiações envolvidas, retratando a identidade cultural do futebol e trazendo uma “uma homenagem a todos os clubes de futebol do Brasil, e seus torcedores”, como consta em seus créditos iniciais.

No sexto filme digitalizado pelo Projeto, O Puritano da Rua Augusta, também de 1966, a direção e roteiro de Mazzaropi contam com participações especiais, como da cantora Elza Soares. Na trama, Mazzaropi é Sr. Pundoroso, industrial e pai de família extremamente conservador, que adere a uma liga moralizante contra os novos costumes da juventude e deixa os filhos e a esposa loucos. Após sofrer um ataque do coração, volta disposto a vingar-se com um plano de "modernização" pessoal: passa a se comportar como um jovem outra vez, muda o visual, as roupas e até o gosto pela música. Uma comédia cujo tema é a transformação comportamental regada pelas matinês do rock in rol da juventude dos anos 1960.

Ao contrário da imagem farsesca transmitida por seus personagens, Mazzaropi era um notório observador do cotidiano e da nossa cultura. Sua carreira, caracterizada por comédias divertidas e leves, às vezes com um toque de melodrama, abordavam temas e discussões importantes como a discriminação na relação entre campo e cidade, bem como as injustiças voltadas ao cotidiano de grupos marginalizados da sociedade brasileira. Amácio Mazzaropi nunca perdeu a mão em utilizar o humor como alicerce de uma linguagem popular que alcançou, e ainda alcança, um impressionante número de espectadores.

 

Referências

BARBOSA, Carla; COUTINHO, Angélica (orgs.). Mazzaropi: o Jeca fez 100 anos!. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2013.  

BARSALINI, Glauco. Mazzaropi: o Jeca do Brasil. Campinas: Editora Átomo, 2002. 

DUARTE, Paulo. Mazzaropi: uma antologia de risos. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. 

FRESSATO, Soleni Biscouto. Caipira sim, trouxa não: representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi. Salvador: EDUFBA, 2011. 

MARTINELLI, Sérgio. Vera Cruz: imagens e história do cinema brasileiro. São Paulo: Abooks, 2002. 

OLIVEIRA, Luiz Carlos Schroder de. Mazzaropi: a saudade de um povo. Londrina: CEDM, 1986. 

SESC. Mazzaropi: a imagem de um caipira. São Paulo: Sesc, 1994. 

SILVA NETO, Antonio Leão da. Enciclopédia Mazzaropi de cinema. São Bernardo do Campo: Editora do Autor, 2019.